CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O 8 de março é só para mulheres cis?

Sonia Corrêa*
Washington Castilhos**

Recentemente, os banheiros femininos da Unicamp foram pichados com frases do tipo “não deixe que os machos invadam nossos espaços”, “usar nossos sapatos não te fazem mulher” e “vou cortar sua pica”. Os "machos" em questão são alunas trans que freqüentam os banheiros femininos, e as pichações foram feitas por grupos feministas radicais, conhecidas como RadFem, que interpretam a presença de alunas trans nos banheiros como ameaça a sua integridade física, pois, segundo elas, isso potencialmente levaria a que homens passassem a se vestir de mulher para atacá-las e estuprá-las nesses locais.

Para as as RadFem, as mulheres trans continuam sendo essencialmente homens por que têm um pênis. Afirmam que os homens são opressores ‘por natureza’ e que as mulheres trans são homens disfarçados que colocam as mulheres em risco quando compartem ambientes femininos. A versão RadFem do lesbianismo político considera o sexo heterossexual como expressão máxima da opressão patriarcal, e por isso elas condenam radicalmente a prostituição e a pornografia. Segundo elas, o feminismo é para “mulheres de verdade” e sua missão é combater frontalmente os homens e as masculinidades como fontes da subordinação, exclusão e violência a que as mulheres foram submetidas ao longo da história.

Quando recorrem à verdade biológica para excluir mulheres trans de banheiros femininos, essa corrente se desvincula da vertente feminista inaugurada por Simone de Beauvoir — quando afirmou, no final dos anos 1940, que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher". Os fios desse insight original se estendem, como bem sabemos, às teóricas contemporâneas que fizeram dos problemas de ‘sexo’e ‘gênero’ seu tema principal — como Gayle Rubin, Judith Butler, Monique de Wittig, Anne-Fausto Sterling e Elizabeth Grosz, entre outras – as quais inspiram o transfeminismo dos dias atuais.

Os transfeminismos pensam sexualidade e gênero no marco da instabilidade e da plasticidade. Sublinham que a coincidência entre ‘sexo’ biológico, identidade, desejo e prática é sempre artificial. Um dos conceitos nodais do transfeminismo é o termo “cisgênero”, cunhado no âmbito acadêmico nos anos 1990, que nomeia a pessoa que não é trans, que se reconhece como pertencendo ao gênero ao qual foi compulsoriamente designada quando nasceu, em função do seu sexo anatômico, ou seja, são Cis gênero as pessoas cujo gênero está presumidamente “em conformidade” com seu corpo biológico. O prefixo “Cis” vem do latim e quer dizer “do mesmo lado”. A perspectiva transfeminista pontua assimetrias entre pessoas Cis e pessoas trans, em termos de poder, status social e acesso a recursos materiais e simbólicos. Ou seja, existem desigualdades entre mulheres trans e mulheres Cis, mesmo quando essas últimas são oprimidas por homens Cis. Uma expressão dessa desigualdade é exatamente o fato de não serem reconhecidas como mulheres de verdade.

Desde a famosa afirmação de Beauvoir em “O Segundo Sexo” (1949), o papel do substrato social na constituição das noções de homem e mulher tem marcado as discussões teóricas e políticas em relação ao que significa ser homem e ser mulher. Do ponto de vista biológico, a mulher é um ser humano com cromossomas XX; entretanto, do ponto de vista cultural, não há somente uma forma de ser mulher, não existe A mulher ou uma essência compartilhada. O significado de ser mulher é instituído de modo diferente em contextos coloniais e metropolitanos. Não é o mesmo sê-lo em uma teocracia católica ou muçulmana que em um regime laico, em um país nórdico ou no Brasil. Há diferenças geracionais, de classe social, de localização geográfica, de crenças religiosas e de ideologias políticas.

A ativista transexual Bárbara Graner, ao final de sua apresentação em seminário na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2007, afirmou: ”Não entendo porque só uma cirurgia genital permita que uma mulher seja chamada de mulher. Somente uma vagina pode atestar que você é mulher? A questão da feminilidade e de nome estão somente ligados ao órgão genital? Sou mulher! Me sinto uma mulher, logo sou uma mulher!” Sendo assim, ao se rebelarem contra o (ou se libertarem do?) status quo e de regras que implicitamente determinam às pessoas o uso de determinados espaços (tais como os banheiros) em função do seu sexo anatômico, as trans (entre elas, as alunas da Unicamp) são feministas, pois estão questionando estruturas hierárquicas de separação espacial.

Para compreender por que as RadFem são refratárias a essa afirmação, é produtivo retornar a Judith Butler, quando a autora retoma um dos clássicos paradoxos centrais dos chamados movimentos identitários. Segundo a filósofa norte-americana, movimentos de luta pelo direito à diferença tendem a exigir que as pessoas que deles fazem parte se ‘tornem iguais’, façam as mesmas demandas, incorporem as mesmas identidades. Em 1993, Butler publicou o livro “Problemas de gênero”, onde questiona a premissa de que é preciso afirmar uma única identidade estável e estática – no caso, a mulher – para se fazer política feminista.

A transfeminista Daniela Andrade, membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB – Osasco (SP) e do Coletivo Feminismo sem Demagogia, sustenta que se o feminismo se quer um movimento de libertação e emancipação da mulher, essa entidade chamada "mulher" deveria abarcar todas as mulheres, incluso aí as mulheres transexuais e travestis.

A advogada se refere a essa forma condensada de machismo e misoginia como "transmisoginia". E devolve a crítica: ”Se o feminismo quer lutar contra a opressão da mulher, ele não pode fazer isso sendo transfóbico e cissexista. Um movimento libertador que continua oprimindo não libertará ninguém de fato. Ou todas seremos livres ou ninguém será livre. Frequentemente me deparo com feministas de correntes mais radicais que não conseguem revisitar seus privilégios cis em uma sociedade que nos nega inclusive o direito de ter um nome e um gênero respeitados, não conseguem se afastar da tese que biologiza e genitaliza as identidades e, no caso, as mulheres. Como se ser mulher fosse apenas e tão somente um dado biológico, como se a mulheridade estivesse instalada na vulva, no útero, nos ovários. Não é o corpo que subjuga a minha construção biopsicossocial, mas o contrário”, continua Daniela Andrade.

A generalização feita pelas correntes feministas mais radicais em relação aos homens fomenta um outro tipo de clausura teórica e de isolamento político, uma vez que, além das mulheres trans, os homens (cis ou trans) também podem pensar em termos feministas e ter práticas consistentes com esse modo de pensar. Assim como nem todos os homens são machistas, sexistas, violentos ou estupradores, nada justifica execrar a entrada de mulheres trans em banheiros femininos, sob a alegação que isto poderia motivar homens a se vestirem de mulher para atacá-las e estuprá-las.

No livro "Feminism is for everybody", bell hooks sublinha, ecoando ideias escritas por Gayle Rubin em 1975, que os inimigo não são os homens, mas sim o machismo. Para ela, os feminismos não se destinam a eliminar os homens, mas sim a contestar o machismo, o androcentrismo, o patriarcado. Da mesma forma, a proposição de que as mulheres cisgêneras são as únicas mulheres de verdade é uma manifestação de intolerância ancorada no determinismo biológico, cujos efeitos deletérios foram identificados e criticados por um vasto número de autoras e autores.

Episódios como o ocorrido na Unicamp e o debate que suscitou interrogam, portanto, o que é ser mulher. Num mês de marco, tal interrogação suscita uma pergunta: Devemos continuar comemorando o 8 de março apenas como o dia internacional das (cis) mulheres, tal como foi definido pela ONU há quarenta anos? Não seria, talvez, o caso de re-inventar essa data como momento para dar visibilidade a todas as formas de desigualdade, discriminação, exclusão e violência que decorrem do gênero como materialização de masculinidades e feminilidades cultural e política – e não por isso menos somaticamente – construídas?

* Sonia Corrêa é pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).

* Washington Castilhos é jornalista, coordenador de Comunicação Social e editor do website do CLAM.