CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Panorama da AIDS no Brasil

Nos dias 14, 15 e16 de dezembro, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) estará realizando, em Porto Alegre, o seminário “Estudos e Pesquisas em DST/HIV/AIDS. Determinantes Epidemiológicos e Sócio-comportamentais”. Trata-se de um evento cujo objetivo é congregar diferentes áreas do saber para debaterem a questão da AIDS no Brasil. No dia 15, a antropóloga Andréa Fachel Leal, professora da Medicina e do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPACS-UFRGS) e do Centro de Estudos da AIDS do Rio Grande do Sul (CEARGS), participará de uma mesa sobre Determinantes Comportamentais e Sociais da epidemia de HIV/AIDS. Na entrevista que se segue, Andréa discute importantes questões relacionadas à AIDS.

Como está o panorama da AIDS atualmente no Brasil, em relação ao comportamento sexual da população?

A epidemia de AIDS tem diferentes características nas diversas regiões do mundo. E dentro do Brasil, país de dimensões continentais, não é diferente: a epidemia apresenta diferentes dinâmicas nas várias regiões. Vamos considerar por um instante as vias de transmissão do HIV: relações sexuais sem proteção, material perfuro-cortante não esterilizado, transfusão de sangue infectado, e a transmissão vertical (de mãe para filho, quando a criança é infectada pelo vírus durante a gestação). A dinâmica da epidemia depende de algumas formas específicas de contato entre pessoas, do acesso que as pessoas têm aos serviços de saúde e à sua qualidade, do acesso à educação e a informações, entre outros fatores. Regiões do país que são mais urbanizadas, mais densamente povoadas, que têm mais serviços, portanto, têm características diferentes no que diz respeito à AIDS. Nesse sentido, percebe-se que não é por acaso que a epidemia de AIDS no Brasil ainda se concentra nas regiões Sul e Sudeste. Assim como não é por acaso que regiões de fronteira e cidades portuárias, por onde historicamente circulam pessoas e bens (simbólicos e materiais – lícitos ou ilícitos), concentram casos de HIV/AIDS.

Especificamente no caso das relações sexuais, penso que nunca é demais dizer que essas são uma forma de relação social – uma relação que envolve (pelo menos) duas pessoas. Sendo assim, as relações sexuais também podem envolver relações de poder, identidades sociais, estigmas e preconceitos. As relações sociais – e portanto as relações sexuais – podem envolver muitas desigualdades e diferenças entre as pessoas. Tais desigualdades se traduzem em habilidades e capacidades diferenciadas quando se trata de decidir sobre o uso da camisinha, por exemplo. Nem todos/as conseguem tomar decisões da mesma forma a esse respeito. Nem todos/as têm as informações sobre o preservativo e como usá-lo. E nem todos/as têm acesso ao insumo em si, isto é, ao próprio preservativo (masculino ou feminino).

Conforme demonstrado pelo estudo GRAVAD – pesquisa realizada nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre – a idade de iniciação sexual de homens e mulheres vêm se aproximando, mas os homens ainda se iniciam mais cedo do que as mulheres. A distância entre homens e mulheres quanto à iniciação sexual é menor em Porto Alegre do que em Salvador. Quer dizer: o modelo tradicional, em que os homens são identificados com o sexo enquanto as mulheres devem se “resguardar”, está mudando aos poucos no Brasil. Outro exemplo: há apenas algumas décadas, a mulher “desquitada”, bem como a “concubina”, eram estigmatizadas. Hoje, depois da instituição jurídica do divórcio, muitos segmentos da sociedade vêm percebendo que o casamento pode não dar certo; a mulher “desquitada” virou divorciada. Desde a constituição de 1988, a mulher que vive junto, sem ser casada, passou a estar numa “união estável” e não mais ser uma mulher que “vive em concubinato”.

Em termos de comportamento sexual, observa-se então que as mulheres podem começar a ter relações sexuais mais cedo, não necessariamente apenas quando casam, e podem ter mais de um parceiro sexual ao longo de suas vidas. Talvez essa seja uma das explicações para uma epidemia que vem se “heterossexualizando”. No início da epidemia no Brasil, os casos notificados de AIDS eram majoritariamente de homens. Atualmente, a proporção de casos notificados de AIDS é, em algumas partes, como o Rio Grande de Sul, de 1:1, isto é, para cada um homem existe uma mulher.

Paradoxalmente, talvez outra explicação para a “heterossexualização” seja justamente o contrário: as desigualdades que persistem entre homens e mulheres, que fazem com que as mulheres tenham menos ou nenhum poder quando se trata de exigir o uso do preservativo numa relação sexual, que as mulheres sejam as principais vítimas de violência doméstica, que as mulheres continuem a ser pensadas e tratadas nos serviços de saúde exclusivamente como “mães em potencial” e por isso mesmo só recebem orientação e insumos relativos à contracepção.

Os dados mais recentes da OMS indicam que, em todo o mundo, a contaminação por HIV diminuiu 17% em oito anos e que, entre os anos de 2007 e 2008, a proporção de pessoas que tiveram acesso a tratamento passou de 7% para 42%. Isso pode ser lido como um avanço?

Certamente, a diminuição de casos, por um lado, e a ampliação ao acesso no tratamento, por outro, são avanços globais. No Brasil, observamos justamente que os epidemiologistas apontam para uma “estabilização” da epidemia, e somos um modelo mundial no que diz respeito ao tratamento. Os avanços são frágeis, entretanto. Para cada indivíduo que conhece seu status sorológico – sabe se tem HIV+ – estima-se que pelo menos outros dois o desconheçam. Daí vem a preocupação no Brasil com campanhas como a Fique Sabendo, promovida pelo Ministério da Saúde, incentivando a testagem. Quanto antes eu souber, mais posso me cuidar e mais cedo posso ingressar no sistema de saúde.

Cortes orçamentários e modelos econômicos adotados em âmbito nacional que pregam diminuição de gastos públicos em campos sociais, como a saúde e a educação, podem significar retrocessos.

Ainda dois comentários sobre a diminuição na contaminação por HIV. Primeiro, deve-se salientar que de modo geral os epidemiologistas trabalham com uma estimativa do número de pessoas vivendo com HIV. A maioria dos países, e isso inclui o Brasil, têm dados sobre casos notificados de AIDS. O tempo que transcorre em média entre a soroconversão e o desenvolvimento da doença, num indivíduo sem acesso a tratamento, é de sete anos. A diminuição de casos notificados portanto pode estar relacionada tanto a uma diminuição na transmissão do HIV que ocorreu há quase uma década quanto pode estar relacionada a um maior ingresso de pessoas no sistema de saúde, fazendo testagem e tendo acesso aos medicamentos. O que me leva ao segundo comentário: para que possamos atribuir a diminuição de casos de AIDS a um conjunto de causas e, especialmente, a um modelo específico de prevenção e tratamento, faz-se necessário que haja maior número de pesquisas científicas no campo do monitoramento e da avaliação.

Mas ao mesmo tempo que existem avanços, há retrocessos. Em Uganda, por exemplo, um projeto propõe pena de morte para o que chamam de “crime de homossexualismo agravado” – quando um indivíduo soropositivo contamina outro através de relações homossexuais. Como pensar tal situação?

Modelos de prevenção e de tratamento devem ser melhor analisados e avaliados. O modelo adotado em Uganda, com amplo apoio técnico, humano, material e financeiro de agências dos EUA, foi a política do ABC: Abstinence, Be faithful, Condoms. Ou seja: em primeiro lugar, pregar a abstinência sexual como forma de prevenção ao HIV; em segundo, a monogamia; e, se tudo o mais falhar, use camisinha. É um modelo baseado em valores bastante conservadores. E em Uganda observou-se uma redução dramática de casos de AIDS, o que foi evidentemente atribuído ao modelo ABC. A estigmatização da homossexualidade em sua forma mais radical – criminalização e pena de morte – deve ser entendida no âmbito de um conjunto mais amplo de valores sociais e dentro de um modelo de saúde extremamente conservador. O modelo brasileiro de prevenção é apresentado com freqüência como a antítese de Uganda: um modelo pautado pela defesa dos direitos humanos, especialmente de direitos sexuais e de direitos reprodutivos.

Qual sua opinião acerca das campanhas de prevenção/conscientização feitas no Brasil?

Campanhas embasadas em direitos sexuais e direitos reprodutivos, que valorizam os direitos humanos, como as campanhas brasileiras, são extremamente positivas. A política nacional de DST/AIDS é, nos últimos vinte anos, estável e coerente de modo geral. É uma política que vem integrando de forma consistente saúde e direitos humanos. Pautam-se as ações pela inclusão e pela não discriminação. Cada vez mais, a política brasileira vem também buscando integrar saúde e desenvolvimento, o que é positivo.


Alguns pesquisadores sustentam a hipótese de que, no início, a AIDS era vista como uma terrível doença, uma sentença de morte, e que, com o advento da terapia anti-retroviral, a AIDS teria passado a ser vista como uma doença crônica. Sendo percebida como “menos grave”, haveria um relaxamento no que diz respeito à prevenção. Talvez essa seja a explicação para uma parcela das pessoas. Já li em sites de notícias que jovens HIV- de países como a Austrália estavam tomando ARV um pouco depois de relações desprotegidas, como uma espécie de “pílula do dia seguinte” para AIDS.

Mas a verdade é que muitos dos estudos de que dispomos no Brasil sobre o uso do preservativo mostram que, a médio e longo prazo, o número de pessoas que faz uso da camisinha desde a sua iniciação sexual – jovens –vem aumentando. A população que tem hoje mais de 60 anos, que em sua esmagadora maioria não usou preservativo no princípio de sua vida sexual, é onde hoje encontramos grande dificuldade e até resistência nos hábitos de prevenção.

Quais os desafios encontrados no que diz respeito à medicalização de portadores do HIV? Mais ainda, quais as barreiras a serem superadas para que possamos ter políticas públicas mais eficazes no tratamento da AIDS no Brasil?

Enquanto não existe cura definitiva para a AIDS, temos de continuar investindo nas duas frentes: prevenção e tratamento universal. Um desafio no âmbito do tratamento diz respeito ao debate sobre a propriedade intelectual – especificamente, a patente de medicamentos. Outro desafio importante diz respeito à integração de diferentes serviços e programas, inclusive no que diz respeito ao tratamento: muitas vezes, as mesmas pessoas que são portadoras do HIV, são também pacientes de hepatites ou de tuberculose. A integração no âmbito de serviços também deve ser aprofundada no que diz respeito à prevenção: a discussão sobre redução de danos quanto ao uso de drogas e serviços de saúde que dêem conta do consumo abusivo de álcool e drogas, por exemplo, deve ser ampliada; a integração de serviços de saúde nos casos de violência sexual, com oferta de testagem para HIV, profilaxia e abortamento legal é outro desafio importante.